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Parecer Jurídico - Bens, posse e propriedade

Parecer Jurídico - Bens, posse e propriedade.

Ementa: USUCAPIÃO ORDINÁRIA.VÍNCULO EMPREGATÍCIO. LEGITIMAÇÃO. ANIMUS DOMINI. JUSTO TÍTULO. MERO DETENTOR. BENFEITORIAS. SUBORDINAÇÃO. VALOR DA CAUSA.

Assunto: Ação de usucapião ordinária indeferida.

Relatório: 
   A autora demanda propositura de ação de usucapião, alegando, em síntese, que possui mansa e pacificamente o imóvel na Rua das Flores, 34, Jardim Paraíso, São Paulo/SP, durante o período de 20 anos no qual era cuidadora do dono do imóvel, que veio a falecer.
   No mais, alega que  realizou benfeitorias no imóvel sem qualquer tipo de contraprestação pecuniária para tais. Tendo em vista, que não possui nenhum outro imóvel, necessita que seja declarado a aquisição do domínio ou  declarado o seu direito de retenção sobre o bem até que pagas as benfeitorias realizadas. 
É o relatório.

Fundamentação jurídica:
1- Endereçamento: 
     Deve a petição inicial  indicar o juízo a que é dirigida (Lei nº 13.105 Art. 319, inciso I). Portanto, o endereçamento correto seria “MM. JUÍZO DA VARA...”.
2-Legitimação:
  O novo CPC (NCPC) dispõe no art. 17,  que “Para postular em juízo é necessário ter interesse e legitimidade”. 
  Valendo-se do binômio necessidade-utilidade qualquer pessoa ou ente que se dirige ao judiciário terá que demonstrar legitimidade e interesse de agir.
   O detentor não poderá demandar em ações possessórias. Caso ocorra, haverá de realizar a nomeação à autoria com base nos arts. 62 e 69 do Código de Processo Civil.
3- Herdeiros:
  Com o falecimento do dono do imóvel e aberta a sucessão o acervo hereditário transmitiu-se, de imediato, aos herdeiros legítimos e testamentários conforme art. 1.784 do Código Civil.
4-Usucapião:
   Maria, pleiteia usucapião na modalidade ordinária, previsto no artigo 1.242 do Código Civil.
   A usucapião, é “modo originário de aquisição da propriedade e de outros direitos reais suscetíveis de exercício continuado (entre eles, as servidões e o usufruto) pela posse prolongada no tempo, acompanhada de certos requisitos exigidos pela lei” (GONÇALVES, 2009, P.256/279)
   Tendo por pressuposto a coisa hábil, posse, justo título e boa-fé, requisitos para a usucapião ordinária e extraordinária. Sendo, os dois últimos requisitos reclamados apenas na usucapião ordinária.
  Tem-se por justo título, segundo as lições de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:
“Justo título é o instrumento que conduz um possuidor a iludir-se, por acreditar que lhe outorga a condição de proprietário. Trata-se de um título que, em tese, apresenta-se como instrumento formalmente idôneo a transferir a propriedade, malgrado apresente algum defeito que impeça a sua aquisição. Em outras palavras, é o ato translativo inapto a transferir a propriedade” (FARIAS,2007, p. 277.)
   Nos dizeres de Maria Helena Diniz, para que haja justo título, a lei exige que o possuidor seja portador de documento capaz de transferir-lhe o domínio. (DINIZ, 2009, p. 164)
  O Código Civil, no artigo 108, determina para os negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais, no valor acima de trinta salários mínimos, que eles devem ser feitos mediante escritura pública.
   Portanto, o justo título é elemento indispensável para obtenção da usucapião na sua forma ordinária, devendo ser um documento escrito, capaz de transmitir o domínio.
5- Detenção:
   A autora mudou-se para o imovel com a ciência que o bem pertencia a outrem e que sua estadia era para fins empregatício, tendo consciência que o bem não lhe pertencia, sua estadia era permitida. Assim, Pedro Álvares Cabral, permitiu que Maria, utilizasse o bem sem contudo, abrir mão da própria posse. 
   Conforme o artigo 1.198 do Código Civil, o detentor conserva a posse em nome de outro seguindo suas ordens e instruções, configurando, assim a subordinação. No caso a subordinação só foi encerrada com o falecimento de Pedro Álvares Cabral em 10/03/2020. 
   Com base no Enunciado doutrinário n. 301,da IV Jornada de Direito Civil para conversão de detenção para posse é necessário o rompimento da relação de subordinação. Desse modo, a partir do falecimento de Pedro, inicia-se o prazo para fins de usucapião.
   Há de se inferir que os herdeiros de Pedro Álvares, notificaram Maria para sair do imóvel em 30 dias. Portanto, a posse exercida por ela durante o lapso temporal desde a ciência da notificação, configura-se com má-fé. 
  Sendo certo que posse de má-fé não gera aquisição na modalidade Usucapião, pois é preciso ter posse mansa, pacífica e contínua, o que não ocorre, visto que houve a notificação para desocupação.
     Acerca da mera detenção:
“(...) Fundamental distinção entre as teorias subjetiva e objetiva da posse reside na exata conceituação de detenção. Enquanto Savigny concebia-a na hipótese de ausência de animus domini por parte daquele que detém o poder físico sobre a coisa, Ihering abstraiu sua noção de qualquer elemento psíquico, diferenciando o detentor do possuidor pela regulamentação do direito objetivo. Vale dizer, o detentor seria aquele que perdeu a proteção possessória em decorrência de um óbice legal, uma opção legislativa vinculada à qualidade de seu título de aquisição da coisa. (...). A detenção é uma posse degradada, juridicamente desqualificada pelo ordenamento vigente. O detentor não poderá manejar ações possessórias e nem tampouco alcançar a propriedade pela via da usucapião. O legislador entendeu que. em determinada situações, alguém possui poder fático sobre a coisa sem que sua conduta alcance repercussão jurídica, a ponto de ser negada ao detentor a tutela possessória (...)”   
(FARIAS, ROSENVALD, p.127/1128)

  Portanto, a permissão não gera posse usucapionem. Sobre a matéria, vale observar o entendimento jurisprudencial:
“Ação de usucapião improcedente. Ausência dos requisitos. Sentença mantida. Usucapião. Prescrição aquisitiva. Modo originário de aquisição da propriedade. Requisitos legais. Coisa hábil (res habilis) ou suscetível de usucapião, posse (possessio) e decurso do tempo ( tempus). Não preenchimento. Mera detenção decorrente de relação empregatícia. Apelante que exercia a função de cuidadora de idoso que residia no imóvel. Ciência de que o bem não lhe pertencia. Reconhecimento do direito dominial de outrem. Inocorrência de modificação do caráter da posse. Apelante não detinha a posse com intenção de dono, haja vista estar ali mediante simples tolerância. Mera tolerância ou permissão não gera posse, o que inviabiliza, consequentemente, a usucapião. Precariedade da posse. Não convalescimento. Aplicação do art 252 do Regimento Interno deste Tribunal. Recurso desprovido. “
(TJ-SP- APL: 00113561120118260453 SP 0011356-11.2011.8.26.0453, Relator: Mary Grun, Data de julgamento: 21/08/2014, 7ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 21/08/2014)  - (grifo nosso)
6- Animus Domini:
 Nesse sentido, falta para a requerida o animus domini, ou seja o possuidor deve obrigatoriamente agir como dono em relação ao imóvel.
      A respeito da natureza da matéria, Carlos Roberto Gonçalves preceitua que:
“Não tem ânimo de dono o locatário, o comodatário, ou arrendatário e todos aqueles que exercem posse direta sobre a coisa, sabendo que não lhe pertence e com reconhecimento do direito dominial de outrem, obrigando-se a devolvê-la”. (GONÇALVES, 2009. p. 259) - (grifo nosso)

     Seguindo o Código Civil no artigo 1.208 “Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância (...)”
7- Benfeitorias
   No que tange ao direito de retenção das benfeitorias, tal possibilidade está vinculada a posse. Uma vez que a detenção não induz a posse, não há possibilidade da aplicação dos artigos 1.219 e 1.255 do Código Civil.
“APELAÇÃO CÍVEL. PROCESSUAL CIVIL. CERCEAMENTO DE DEFESA. INEXISTENTE. DIREITO DE INDENIZAÇÃO E RETENÇÃO POR BENFEITORIAS E ACESSÕES. MERO DETENTOR. PRETENSÃO DESCABIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.
(...)
2. O exercício de poder fático sobre o imóvel, com fundamento em mera liberalidade do proprietário, caracteriza detenção, pois lastreada em atos de permissão do verdadeiro possuidor (art. 1208 do Código Civil). 3. Ao detentor não é assegurado o direito de indenização ou retenção por benfeitorias ou acessões realizadas no bem, diante da inaplicabilidade dos arts. 1219 e 1255 do Código Civil. Precedentes do STJ e do TJDFT. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.” 
(TJ-DF 07083260620188070001 DF 0708326-06.2018.8.07.0001, Relator: LUÍS GUSTAVO B. DE OLIVEIRA, Data de Julgamento: 12/12/2018, 4ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE: 25/01/2019. Pág.: Sem Página Cadastrada)

   Se as benfeitorias foram realizadas depois do rompimento da relação de subordinação, Maria converteria seu status para possuidora de má-fé, sendo ressarcidas as benfeitorias necessárias. Entretanto, não adquire o direito de retenção para garantir o pagamento de referida indenização. (Artigo 1.220, Código Civil)
8- Citação:
    A Ação de usucapião inicia com o requerimento do interessado a citação da pessoa em cujo nome o imóvel estiver registrado, dos vizinhos confinantes e de todos os demais interessados. Portanto, o Sr. Vargas, também deverá ser citado pois é um terceiro interessado na compra do imovel. Devendo ser indicado na inicial com o endereço para citação.
   O oficial de registro de imóveis também promoverá a publicação de edital em jornal de grande circulação, onde houver, para a ciência de terceiros eventualmente interessados, que poderão se manifestar em 15 dias. ( Lei 6.015/73)
   Cabe ao oficial de registro de imóveis dar ciência à União, ao estado, ao Distrito Federal e ao município, pessoalmente ou por carta com aviso de recebimento.
    A teor do artigo 178, I. CPC, deverá o Ministério Público intervir, visto cuidar-se de matéria de interesse social relevante.
9-Valor da causa:
      O valor da causa é requisito da petição inicial, sendo assim uma forma de impulsionar o processo e impactar competências e custas processuais.
    Na ação de usucapião, o valor da causa, segundo a corrente majoritária é o valor do bem usucapiendo.  
   O Código de Processo Civil, art. 292, IV, por analogia: Art. 292. O valor da causa constará da petição inicial ou da reconvenção e será: (…) IV – na ação de divisão, de demarcação e de reivindicação, o valor de avaliação da área ou do bem objeto do pedido (RJTJSP 114/363, (TJRS, 5ª Câm., AgI nº 585.034.424, rel. Des. Ruy Rosado de Aguiar Junior, RJTJRS, 112/318)
   Ou o valor estimado pelo autor: TJSC, 1ª Câmara, Apelação nº 9.790, relator: Des. Ivo Sell; Alexandre de Paula, Código de Processo Civil Anotado, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, vol. 1, p. 646.
    Na prática atribui-se o valor venal ou valor de referência do imóvel.

“Uma vez que não existe previsão expressa legal quanto ao valor da causa em usucapião, a doutrina e a jurisprudência pátrias defendem a aplicação, por analogia, do inciso VII do artigo 259, do mesmo diploma processual, porque trata, dentre outras ações da reivindicatória. (...) Sendo assim, correta a posição sustentada pelo agravante, no sentido de que deve ser considerado o valor venal do imóvel R$ 9.7333,45 atribuído pela Municipalidade para fins de IPTU”. (TJSP. AL 0168488-64.2013.8.26.0000)
Conclusão:
       A autora residia no imovel em razão de vínculo empregatício, com conciência que o imovel não há pertencia e sua estadia era apenas permitida. Portanto, era considerada como mera detentora do bem, não tendo  animus domini de agir como dona do imovél. 
    Rompida a relação de subordinação com o falecimento de Pedro Álvarez, houve a transferência da propriedade para os herdeiros que a notificaram para deixar o bem pois agora seu status converteu-se para  possuidora de má-fé.
        O direito a retenção e indenização de benfeitorias está relacionado ao instituto da posse. Entretanto, se as benfeitorias foram feitas após o falecimento do até então proprietário, configura a possibilidade de ressarcimento das benfeitorias necessárias.
É o parecer.
São Paulo, 27 de novembro de 2020.
Advogado XXXX
OAB/SP N°XXX
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